No início da década de 80, um diretor estreante
assumiu a responsabilidade de levar às telas uma trama inovadora, na qual não
faltavam nem a atmosfera gótica nem o erotismo mórbido e intenso tão bem
explorados nas obras de Anne Rice, já em voga naquela época. Em Fome de Viver”(The Hunger),Tony Scott – irmão do cineasta Ridley Scott – apresenta uma das
obras mais cultuadas e originais do universo vampiresco, dando uma perspectiva
sofisticada à temática que em breve se tornaria “marginalizada” em produções
repetitivas ou trash.
Baseado no best-seller homônimo de Whitley Strieber,
Fome de Viver conta a história de Mirian Blaylock (Catherine Deneuve,
simplesmente perfeita no papel), uma mulher misteriosa, elegante... e imortal,
que sobrevive através dos séculos com o sangue de seus amantes. Juntamente com
John (David Bowie), seu atual amante, com quem aparentemente forma um casal de
ricos góticos, Mirian seduz pessoas, roubando-lhes a vida e destruindo os
vestígios após se alimentar. O diferencial de Fome de Viver começa nas
próprias características dos personagens centrais: aqui, os sugadores não
queimam ao sol (mas, obviamente, também não brilham diante dele), não temem
alho ou crucifixos e nem são demônios irracionais; o ponto principal, porém,
diz respeito à curiosa forma como se alimentam. Mirian e John não possuem
presas aguçadas como os vampiros tradicionais; para matar as vítimas, utilizam
pingentes em forma de ank (um símbolo egípcio) que ocultam uma pequena lâmina,
com a qual cortam os pescoços das pessoas. Falando assim, haverá muitos
indivíduos que estranharão essa forma de “ser vampiro”, mas é interessante
notar que, no decorrer do filme, a palavra “vampiro” não é pronunciada nem uma
única vez; de fato, isso é uma conclusão a que o espectador chega ao saber que
eles sobrevivem com sangue humano, são imortais, gostam de roupas sóbrias e
escuras – sem abrir mão da sofisticação – e preferem andar à noite.
Conforme a trama avança, John passa a sofrer os
efeitos de uma raríssima doença degenerativa que provoca um envelhecimento
acelerado; preocupada com ele, Mirian recorre à ajuda da Dra. Sarah Roberts
(Susan Sarandon), uma médica especialista no assunto, mas os rumos tomados a
partir de então são totalmente inesperados. Nasce entre elas um vínculo
homoerótico que culmina em uma das cenas de sexo lésbico mais icônicas do
cinema.
Combinando o complexo drama do relacionamento entre
Miriam e Sarah, e unindo a isso a melancolia da imortalidade, da solidão e da
morte, o filme de Tony Scott tem razões suficientes para figurar como um dos
filmes mais renomados quando se fala em história gótica. Chama a atenção no
filme, justamente, a forma como os elementos da cultura gótica se agregam e
ajudam a tecer um conjunto de organicidade exemplar: a trilha sonora “dark”, a
fotografia escurecida e sombreada, propositalmente com pouca luz, os diálogos e
até os gestos e trocas de olhar, tudo possui um sentido, um porquê, embora sob
uma camada sombria de contextos. O roteiro de Ivan Davis e Michael Thomas
favorece o desenvolvimento da trama com a sutileza necessária para que
Catherine Deneuve transmita, gradativamente, a morbidez e a consciência de que
a imortalidade é mais uma tortura do que uma dádiva, o que justifica a
intensidade com que ela deve aproveitar a vida efêmera dos seus amantes.
As interpretações de Susan Sarandon e de David Bowie
também acrescentam visões particulares dentro do contexto do filme: Sarah,
mostrando a médica segura que vê suas crenças se diluírem ao se envolver com
Mirian e experimentar algo que não imaginava ser possível; John, evidenciando o
sofrimento que acompanha a degradação física e moral que o acompanha a partir
do momento em que passa a sofrer sua doença e refletir sobre sua relação com
Mirian.
Finalmente, o clímax do filme é excepcional, unindo o
drama da perda a uma cena típica de terror com direito a alguns sustos
substanciais e um horror visual marcante. Mais de trinta anos após seu
lançamento, Fome de Viver ainda se mantém em status de filme Cult e, mesmo
que não siga a cartilha tradicional de vampiros monstros e nem tenha sido mais
um sucesso meramente comercial, preserva a essência obscura e tétrica da "psicologia" vampiresca.
0 comentários:
Postar um comentário